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  • André Grejio de Alencar

Conto publicado na Antologia

Prêmio Vip de Literatura 2021


Não se avexe, mãezinha. A senhora não sabe que tudo o que sou é por causa da senhora? Pois, então, pra que essa raiva toda agora na hora de ir? Sabe bem que a vida é sofrida e não se deve ficar revirando o passado. Foi o padre Alberto mesmo no dia de São Benedito que disse pra esquecer o que passou. Falou que o próprio santo ia olhar por mim e pela senhora. Me deixou beijar a cruz e tudo. Santo preto sabe bem que a vida não é fácil. Só faltava ser mulher pra entender ainda melhor. E tem mais: ficar aí nessa de remoer as coisas agora só piora. Eu é que não quero ver a senhora ir embora desse jeito e me deixar aqui desgramada da cabeça. Que aperreio todo é esse que quer me deixar? Nó cego que não vou carregar então trate de parar com esses bravejos porque não tô aqui pra isso.

Não, não chora. É só modo de falar. É que eu nem queria... eu falei o que não devia algumas vezes, mas já passou. Acho que é hora de desdizer certas coisas porque na vida a gente se desentende e com a cabeça atazanada acaba falando e fazendo umas coisas que se arrepende depois. A senhora tá certa: é hora da gente se endireitar de novo. Uma pena essa prosa só agora nessas formas. Pra senhora ver que é preciso se corrigir porque uma vai e a outra fica aborrecida pensando nessa imagem. Nó cego esse que não quero carregar de saber pra sempre que minha mãe foi pros bichos sofrendo porque achava que eu não tinha perdoado. Tô aqui é pra isso, pra dizer que eu desculpo a senhora mesmo que às vezes eu fique desparafusada porque tenho quase certeza que você sabia do que tava se passando.

Eu posso cantar um pouco pra senhora, pra se acalmar. Aquela de quando me colocava pra dormir. Sabe, acho que a gente devia era falar mesmo das coisas. Avalie só se essa conversa tivesse se assucedido quando fiquei mais mocinha. Podia ser que não tivesse tanta arenga nessa nossa vida. Você ia falar pra mim que não sabia que aquele catinguento tava de safadeza pro meu lado, ainda criança, e eu ia dizer que era hora de ir embora dali refazer nossa vida sem aquele traste. Mas você sabe e eu sei que teve aquela vez que forcei pra me desacochar dele e quando virei deu de eu olhar pra trás e ver a senhora ali perto. Aí acabou que você não podia vir de conversa comigo como se nada tivesse se passando porque ficou encaraminholando se eu tinha mesmo conseguido ver.

E me deixou sozinha. Tudo o que eu precisava era saber que você me queria porque eu não entendia o que tava acontecendo e ficava rodando na cabeça se eu tinha culpa e você tão distante que só o diabo da cruz. Mas eu cresci e me apercebi melhor. É verdade que fiquei um pouco atrapalhada e por isso que roubei aquele verme nojento só pra senhora ficar sozinha. E suportei o cabra servindo de mulher pra ele. Tinha certo gosto de saber que a senhora tava toda acabrunhada enquanto eu é que tava ali. Ahhh, mãezinha, sabe que ele nunca valeu a desgraça toda da nossa vida? Nunca valeu o prato de comida que comia e mesmo assim você escolheu fazer as vontades todas dele.

Mas agora acalma. Tudo isso já passou. Queria até contar uma coisa. Coisa nova que você não sabe. Acredita que fui eu que dei fim no seu macho? Que doença nada. Eu queria era rir quando me disseram que no documento veio escrito que era um tipo de doença que ninguém conhecia. Eu tinha que chorar mas sofria mesmo era pra não cair na risada porque ia ser um aperreio que só vendo. Dá até um aperto no peito perceber agora que perdemos tanto por tão pouco. Um saco de farinha valia mais do que aquele desgraçado e mesmo assim estragamos a vida toda. E olha só a senhora, ainda deu de eu pedir desculpa pra ele. Mas o tempo leva essas coisas todas não é, mãe? Dá um pouco de sossego. Primeiro foi ele, agora você e vai ficar eu aqui nesse mundão de meu Deus. É bom ter essa prosa porque posso seguir sem esse nó cego que foi a vida. Sem esse peso na cabeça. Perdoada. Respira, mãezinha. Respira fundo e fecha os olhinhos que vou cantar pra senhora.

  • André Grejio de Alencar

Conto publicado no Prêmio Off Flip 2021


"Espero que cada palavra aqui escrita chegue a você como um suave toque. Brisa que beija a face e abraço que enlaça o peito, a memória, alcança o perdão."

Assim iniciava, ele, a aguardada carta, desejando o que eu, criador e espectador da narrativa, também desejo, pois que sabemos - eu e ele - que poucas são as chances daquelas palavras alterarem o resultado da cena anterior, escrita em um momento de desilusão deste narrador.

A cena, uma briga de nove páginas com palavras que nunca deveriam ser ditas ou escritas, era na verdade para ser um simples desabafo de Paulo. Sim, o que escreve a carta na cena atual. Namorado de Gláucia, ele que era tido pelos outros e, principalmente, por ela, como o cara perfeito, precisava contar de seus receios aos rumos de sua vida. Não conseguia mais esconder a angústia que trazia desde o momento em que a rotina fez dele o que nunca desejou. Justo ele, que sempre sonhou com liberdade e paisagens construídas por chegadas e despedidas, agora se via preso. Não a ela, mas a uma vida rígida de horários, locais, etiquetas e tantas cobranças que não conseguia reconstruir o fio que conduzia a tantos credores.

Ela, que há muito havia se esquecido de sua natureza livre, julgava que todas as mudanças eram um progresso na vida do casal e que aquelas lamentações eram apenas uma forma dele dizer que não a amava mais. E quando os corações se afastam, todo o corpo grita. Não por maldade, mas por medo. Medo de que aquela distância aumente e que, ao despertar, o ser amado tenha virado a esquina, partido da visão, do toque. E nada pode ser mais cruel àquele que ama do que ver a pessoa amada fazer a curva, olhar para as oportunidades da vida. É por isso que as separações conjugais doem mais que a morte.

Mas os gritos, quando proferidos por um corpo em desespero, não são conduzidos pela razão e as palavras guardadas das desilusões de toda uma existência são despejadas como regurgito de comida que caiu mal. E Paulo, em meio às ofensas das bocas que há pouco haviam se beijado, expeliu o que o atormentava: "Saia da minha vida!".

Trancado agora no quarto, vivia ele uma nova prisão. Tudo lhe faltava. Como se ela fosse uma deusa mitológica capaz de trazer o presente e que, por estar furiosa, tudo havia arrancado. Nem mesmo as palavras chegavam, pois que o papel continuava com o único primeiro parágrafo escrito. E nem ele, e nem eu, sabemos como continuar.

  • André Grejio de Alencar

Conto publicado na Antologia do XI CLIPP -

Concurso Literário de Presidente Prudente


- Isso confirma que tudo na vida... passa.

Encerrava assim, Damião, mais uma conversa. A frase, já conhecida por todos, era sempre o ponto final e, coincidência ou sabedoria dele ao escolher o momento exato de usar, realmente sempre encerrava bem. Mas, a verdade é que nem tudo passava na vida de Damião, uma vez que o tempo e a própria vida pareciam não querer passar. Noventa e oito anos, quatro casamentos, quatro vezes viúvo, netos, bisnetos e tataranetos impossíveis de se recordar, e lá estava ele.

Se, em alguns poucos momentos, a saúde parecia querer fugir, logo o corpo a enlaçava novamente e Damião seguia os dias. Os dedos enrugados pareciam os únicos a sentir a ação do tempo. Os dentes, assim como os amores, pelo caminho haviam ficado, mas Damião não se importava com as faltas e o sorriso continuava largo. Principalmente aos domingos, quando a casa se enchia. A eufórica alegria das crianças correndo. E parecia, para ele, que cada vez havia mais. A pedido de alguns - que também não conseguia recordar - elas lhe tomavam a benção e sentavam em seu colo. Ele sorria. Aquela ternura era como voltar ao início da jornada como se elas, as crianças, lhe doassem um pouco da vida que tinham pela frente. E ele se acriançava novamente. Não fosse o peso da idade e sairia correndo, imitando avião ou dançando alguma música já ultrapassada.

Mas, como tudo na vida passa, certo dia Damião se deu conta de todos que ficaram pelo caminho. Certa angústia apossou de seu ser. Com extrema dificuldade se recordou dos filhos, não sabia dizer se de todos, mas daqueles que conseguiu; quais ainda estavam vivos? Lembrou-se do cheiro que cada um deles tinha quando bebê.

Recordou também o nascimento dos primeiros netos, quanta alegria sentiu. Foi justamente no nascimento do primeiro que aprendeu que tudo na vida passa. Explico: no mesmo mês da chegada do filho do filho, o primeiro amor partiu para a viagem ao desconhecido. Ele, que passou dias chorando sem cessar, sorriu ao ver o pequeno de joelhos roxos, olhos claros e cheiro de tulipas amarelas.

Pouco tempo depois, vieram os outros, cada um com cheiro diferente. E uma nova amada. Novos filhos. Netos. Viagens. Desconhecidos. E lá estava ele, sentado na cadeira de balanços, pensando a vida, quando sorrisos e gritos de crianças começou a ouvir. Era domingo e não demorou muito para que a correria começasse, os abraços, as bênçãos, os colos; dessa vez, antes de qualquer conversa se iniciar, Damião disse: - "Isso confirma que tudo na vida... passa”.

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