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Nó Cego

  • Foto do escritor: André Grejio de Alencar
    André Grejio de Alencar
  • 2 de mai. de 2022
  • 3 min de leitura

Conto publicado na Antologia

Prêmio Vip de Literatura 2021


Não se avexe, mãezinha. A senhora não sabe que tudo o que sou é por causa da senhora? Pois, então, pra que essa raiva toda agora na hora de ir? Sabe bem que a vida é sofrida e não se deve ficar revirando o passado. Foi o padre Alberto mesmo no dia de São Benedito que disse pra esquecer o que passou. Falou que o próprio santo ia olhar por mim e pela senhora. Me deixou beijar a cruz e tudo. Santo preto sabe bem que a vida não é fácil. Só faltava ser mulher pra entender ainda melhor. E tem mais: ficar aí nessa de remoer as coisas agora só piora. Eu é que não quero ver a senhora ir embora desse jeito e me deixar aqui desgramada da cabeça. Que aperreio todo é esse que quer me deixar? Nó cego que não vou carregar então trate de parar com esses bravejos porque não tô aqui pra isso.

Não, não chora. É só modo de falar. É que eu nem queria... eu falei o que não devia algumas vezes, mas já passou. Acho que é hora de desdizer certas coisas porque na vida a gente se desentende e com a cabeça atazanada acaba falando e fazendo umas coisas que se arrepende depois. A senhora tá certa: é hora da gente se endireitar de novo. Uma pena essa prosa só agora nessas formas. Pra senhora ver que é preciso se corrigir porque uma vai e a outra fica aborrecida pensando nessa imagem. Nó cego esse que não quero carregar de saber pra sempre que minha mãe foi pros bichos sofrendo porque achava que eu não tinha perdoado. Tô aqui é pra isso, pra dizer que eu desculpo a senhora mesmo que às vezes eu fique desparafusada porque tenho quase certeza que você sabia do que tava se passando.

Eu posso cantar um pouco pra senhora, pra se acalmar. Aquela de quando me colocava pra dormir. Sabe, acho que a gente devia era falar mesmo das coisas. Avalie só se essa conversa tivesse se assucedido quando fiquei mais mocinha. Podia ser que não tivesse tanta arenga nessa nossa vida. Você ia falar pra mim que não sabia que aquele catinguento tava de safadeza pro meu lado, ainda criança, e eu ia dizer que era hora de ir embora dali refazer nossa vida sem aquele traste. Mas você sabe e eu sei que teve aquela vez que forcei pra me desacochar dele e quando virei deu de eu olhar pra trás e ver a senhora ali perto. Aí acabou que você não podia vir de conversa comigo como se nada tivesse se passando porque ficou encaraminholando se eu tinha mesmo conseguido ver.

E me deixou sozinha. Tudo o que eu precisava era saber que você me queria porque eu não entendia o que tava acontecendo e ficava rodando na cabeça se eu tinha culpa e você tão distante que só o diabo da cruz. Mas eu cresci e me apercebi melhor. É verdade que fiquei um pouco atrapalhada e por isso que roubei aquele verme nojento só pra senhora ficar sozinha. E suportei o cabra servindo de mulher pra ele. Tinha certo gosto de saber que a senhora tava toda acabrunhada enquanto eu é que tava ali. Ahhh, mãezinha, sabe que ele nunca valeu a desgraça toda da nossa vida? Nunca valeu o prato de comida que comia e mesmo assim você escolheu fazer as vontades todas dele.

Mas agora acalma. Tudo isso já passou. Queria até contar uma coisa. Coisa nova que você não sabe. Acredita que fui eu que dei fim no seu macho? Que doença nada. Eu queria era rir quando me disseram que no documento veio escrito que era um tipo de doença que ninguém conhecia. Eu tinha que chorar mas sofria mesmo era pra não cair na risada porque ia ser um aperreio que só vendo. Dá até um aperto no peito perceber agora que perdemos tanto por tão pouco. Um saco de farinha valia mais do que aquele desgraçado e mesmo assim estragamos a vida toda. E olha só a senhora, ainda deu de eu pedir desculpa pra ele. Mas o tempo leva essas coisas todas não é, mãe? Dá um pouco de sossego. Primeiro foi ele, agora você e vai ficar eu aqui nesse mundão de meu Deus. É bom ter essa prosa porque posso seguir sem esse nó cego que foi a vida. Sem esse peso na cabeça. Perdoada. Respira, mãezinha. Respira fundo e fecha os olhinhos que vou cantar pra senhora.

 
 
 

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