Carta inacabada
- André Grejio de Alencar
- 2 de mai. de 2022
- 2 min de leitura
Conto publicado no Prêmio Off Flip 2021
"Espero que cada palavra aqui escrita chegue a você como um suave toque. Brisa que beija a face e abraço que enlaça o peito, a memória, alcança o perdão."
Assim iniciava, ele, a aguardada carta, desejando o que eu, criador e espectador da narrativa, também desejo, pois que sabemos - eu e ele - que poucas são as chances daquelas palavras alterarem o resultado da cena anterior, escrita em um momento de desilusão deste narrador.
A cena, uma briga de nove páginas com palavras que nunca deveriam ser ditas ou escritas, era na verdade para ser um simples desabafo de Paulo. Sim, o que escreve a carta na cena atual. Namorado de Gláucia, ele que era tido pelos outros e, principalmente, por ela, como o cara perfeito, precisava contar de seus receios aos rumos de sua vida. Não conseguia mais esconder a angústia que trazia desde o momento em que a rotina fez dele o que nunca desejou. Justo ele, que sempre sonhou com liberdade e paisagens construídas por chegadas e despedidas, agora se via preso. Não a ela, mas a uma vida rígida de horários, locais, etiquetas e tantas cobranças que não conseguia reconstruir o fio que conduzia a tantos credores.
Ela, que há muito havia se esquecido de sua natureza livre, julgava que todas as mudanças eram um progresso na vida do casal e que aquelas lamentações eram apenas uma forma dele dizer que não a amava mais. E quando os corações se afastam, todo o corpo grita. Não por maldade, mas por medo. Medo de que aquela distância aumente e que, ao despertar, o ser amado tenha virado a esquina, partido da visão, do toque. E nada pode ser mais cruel àquele que ama do que ver a pessoa amada fazer a curva, olhar para as oportunidades da vida. É por isso que as separações conjugais doem mais que a morte.
Mas os gritos, quando proferidos por um corpo em desespero, não são conduzidos pela razão e as palavras guardadas das desilusões de toda uma existência são despejadas como regurgito de comida que caiu mal. E Paulo, em meio às ofensas das bocas que há pouco haviam se beijado, expeliu o que o atormentava: "Saia da minha vida!".
Trancado agora no quarto, vivia ele uma nova prisão. Tudo lhe faltava. Como se ela fosse uma deusa mitológica capaz de trazer o presente e que, por estar furiosa, tudo havia arrancado. Nem mesmo as palavras chegavam, pois que o papel continuava com o único primeiro parágrafo escrito. E nem ele, e nem eu, sabemos como continuar.
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